por Rafaela Degani, em Nomes Científicos.
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Há tempos venho falando da tendência atual em se censurar quem fala determinadas palavras e expressões consideradas racistas por alguns. O motivo para o desuso desses termos e a repreensão a quem os profere, na maioria dos casos, ainda que o contexto não indique preconceito, se justificaria pela etimologia, que estaria ligada de alguma forma a racismo e/ou escravidão. Desses, grande parte se baseia em pseudoetimologia e pseudo-história, ou seja, lorotas sem evidência.
Nessa linha de “pensamento”, vários manuais recomendam que se deixe de usar termos como ‘inhaca’, ‘doméstica’, ‘meia-tigela’ e ‘criado-mudo’ – todos baseados em pseudoetimologia (já explicados aqui na página).
Pois para quem aprova esse tipo de cancelamento de palavras e expressões, venho aqui dar minha contribuição, sugerindo mais uma para a lista: chimarrão. Isso, mesmo: chimarrão… Se você não quiser levar uma espinafrada de gente que adora enfiar racismo onde não existe, pode ir se atentando para o nome da bebida símbolo do Rio Grande do Sul. Mas, bah, chê! Quem diria… Então, te aprochegue que eu te explico.
Para quem não conhece, o mate é uma bebida típica do Sul da América do Sul resultado da infusão de erva-mate (‹Ilex paraguariensis›), tomada numa cuia com uma bomba (uma espécie de canudo de metal ou de madeira). É uma herança de várias culturas indígenas, como a guarani, a caingangue e a quíchua.
Há duas formas básicas de se tomar o mate: o mate-doce, adoçado com açúcar cristal ou mel (abominado pelos tradicionalistas) e o amargo, o mais popular no Sul do Brasil. Em meados do século XIX, o mate sem açúcar era chamado de ‘mate-chimarrão’, o que hoje ficou reduzido a ‘chimarrão’.
Ali, ‘chimarrão’ funcionava como um adjetivo empregado para qualquer bebida sem adoçamento. Podia-se falar em café chimarrão, por exemplo. É que ‘chimarrão’ significava ‘bravo, rústico, silvestre’. A disponibilidade do açúcar nas campanhas sulinas sempre foi pequena, o que fez com que o povo daquela região se acostumasse a apreciar a infusão da erva no estado da rusticidade que a Natureza oferece.
‘Chimarrão’ era um termo que remetia à selva, ao mato. Era atribuído mais especificamente às espécies domesticadas que passaram a viver livres no mundo, regredidas ao estado selvagem. No rio Grande do Sul, por exemplo, era muito comum se falar do ‘gado chimarrão’, que vivia no mato e não obedecia a costeio. Soltos no mundo, também haviam os ‘cães chimarrões’ e os ‘cavalos chimarrões’, todos difíceis de lidar.
Com esse sentido de ‘asselvajado, bravio’ é que ‘chimarrão’ apareceu em nossa língua, como uma adaptação do espanhol rio-platense ‘cimarrón’. Em toda a América Espanhola, ‘cimarrón’ servia para se referir aos animais fugitivos que passavam a viver soltos, mas não foi em referência a eles que o termo surgiu.
No ‘Diccionario general etimológico de la lengua española’, de 1887, Roque Bargia explica que o adjetivo se aplica, nas Antilhas, “aos escravos que fogem da casa de seus amos”. O filólogo británico Walter William Skeat afirma no seu ‘Etymological Dictionary of the English Language’, de 1884, que o escravo fugitivo era chamado de ‘cimarrón’, o que originou o vocábulo inglês ‘maroon’ (fugido, quilombola).
Skeat ainda explica que a palavra ‘cimarrón’ vem do espanhol ‘cima’ (com o mesmo significado em português), com o sentido de ‘cume, ápice, topo de montanha’. Isso porque, geralmente, os fugitivos se escondiam nas florestas das montanhas, em locais de difícil acesso.
Enfim, é esta a história. O termo chimarrão tem em si a marca da escravidão e do racismo histórico. Isso, sim, é um fato documentado, ao contrário daquela lista de censuras. Então, o termo ‘chimarrão’ deve ser cancelado por isso? É claro que não!
Etimologia alguma deve ser usada para censurar quaisquer palavras e expressões. As palavras se transformam, adquirem novos significados e abandonam velhos sentidos. Vale o conceito atual. Quem fala ‘chimarrão’ nem de longe quer fazer qualquer referência a escravos fugitivos e provavelmente nem saiba dessa história. É quase um absurdo ter de explicar algo assim, mas
parece que as pessoas que espalham essa ideia de cancelamento de palavras não dão a mínima para a Linguística e a lógica. Uma barbaridade…
Por Nomes Científicos.
Referências: ‘Vocabulario rioplatense razonado’, por Daniel Granada (1800); ‘’Gombo Zhèbes’: little dictionary of Creole proverbs’, por Lafcadio Hearn (1885); e ‘Diccionario da lingua portugueza’, por António de Morais Silva (1891).
Figura: Waldryano/Pixabay (out. 2016).
Sugestão: Rafaela Degani