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“Menina linda, eu te adoro”
Foi amor à primeira vista, mas eu não podia soltar um “eu te amo” logo de cara. Soaria esquisito e poderia assustá-la. Também não apareceu no princípio do namoro, pois, sei lá, parecia que ainda era cedo. Durante um bom tempo, então, nas cartinhas que trocávamos (sim, sou dessa época ), nós não íamos além do “eu te adoro”.
Sim, ficava estranho, mas era até onde minha coragem permitia:
“Então, vou ficando por aqui. Um beijão para você!
Te adoro!
Rafa”
‘Adorar’ equivalia a ‘curtir, gostar muito’. Na escala do amor, dava a impressão de ser ainda um nível abaixo de ‘amar’. Mal sabíamos que, por muito tempo, ‘adorar’, na verdade, estava num nível superior, era o ápice da hierarquia do coração. Tanto é que muita gente só reserva esse verbo a Deus, o único que seria digno de adoração.
Meu pai, evangélico, era um desses que censurava quem dissesse perto dele qualquer coisa ligada a ‘adorar’ que não fosse à Santíssima Trindade. Eita! Então, eu tinha que cuidar de como falar perto dele para não ganhar uma admoestação de graça.
O dicionário não me ajudava, pois está lá: “adorar: prestar culto a divindade”. Eitaaa! E a Etimologia endossa: ‘adorar’ vem do latim ‘adorare’, formado pela junção do prefixo ‘ad-’ e o verbo ‘orare’.
‘Orare’ é o que nos deu ‘orar’ em português. Daí temos o oráculo (de ‘oraculum’: resposta de um deus); a plantinha que fica ótima refogada, a ora-pro-nóbis (‹Pereskia aculeata›; de ‘ora pro nobis’: rogai por nós); a Oratória (a arte da eloquência) e o oratório (armarinho em que um santo é disposto para veneração).
‘Ad-’ carrega em si a ideia de ‘aproximação, estar junto de, para a’. Por exemplo, a glândula ad-renal, como o nome indica, é a que fica próxima ao rim. Inclusive, é daí que vem o nome ‘adrenalina’, o hormônio por ela produzido.
Há inúmeras palavras com ‘ad-’ na composição, sempre as relacionando a alguma outra coisa: adaptar (ajustar a), adequar (igualar a), aderir (colar a), adicionar (somar a), adjetivo (junto a), administrar (ajudar a ministrar), admirar (maravilhar-se com), adornar (equipar com), adquirir (vir a ter), advogar (chamar a si), etc.
Então, se orar é fazer uma prece, adorar é dirigir a súplica especificamente a algo ou alguém, pedir diretamente a uma divindade. Esse pedido pode ser feito num culto cerimonioso, o que fez ‘adorar’ ter o significado de ‘cultuar’. Direcionado a um ídolo (a imagem que representa a divindade), tem o sentido de ‘idolatrar’.
Quem pede é o adorador (em latim, ‘adorator’); quem recebe o pedido é o adorado (‘adoratus’) e o que é digno de adoração (‘adoratio’) é o adorável (‘adorabilis’).
Por uma extensão de sentido, indo lá para a Poesia, ‘adorar’ começou a ser uma hipérbole, uma figura de linguagem em que o exagero visa dar mais ênfase. Para se demonstrar o quanto se gosta de algo ou alguém, o objeto admirado é tão amado que passaria a ser adorado, merecedor de veneração.
Com o tempo, o significado foi sofrendo alterações. A adoração foi se distanciando das figuras divinas e se aproximando dos pobres mortais ficando apenas com o sentido de ‘ter grande predileção por, gostar muito de’. Aí, cabe a nós compreendermos e utilizarmos a palavra conforme o contexto, sem problema algum.
Brigadeiro? Adoooro, mas, claro, não a ponto de endeusá-lo. E aquela namoradinha do começo do texto? Ah, eu a adoro até hoje – minha veneração diária.
Referência: ‘Dicionário Latino Português’, por Francisco Torrinha (1942).
Figura: @eunaoaguentomaisomilitantemistico, no Facebook (set. 2021).
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Título: Kiko Arquer