“Adorar” é só pra Deus?

Fonte: Nomes Científicos. Siga no Face



“Menina linda, eu te adoro”

Foi amor à primeira vista, mas eu não podia soltar um “eu te amo” logo de cara. Soaria esquisito e poderia assustá-la. Também não apareceu no princípio do namoro, pois, sei lá, parecia que ainda era cedo. Durante um bom tempo, então, nas cartinhas que trocávamos (sim, sou dessa época 🤷‍♂️), nós não íamos além do “eu te adoro”.

Sim, ficava estranho, mas era até onde minha coragem permitia:

“Então, vou ficando por aqui. Um beijão para você!

Te adoro!

Rafa”

‘Adorar’ equivalia a ‘curtir, gostar muito’. Na escala do amor, dava a impressão de ser ainda um nível abaixo de ‘amar’. Mal sabíamos que, por muito tempo, ‘adorar’, na verdade, estava num nível superior, era o ápice da hierarquia do coração. Tanto é que muita gente só reserva esse verbo a Deus, o único que seria digno de adoração.

Meu pai, evangélico, era um desses que censurava quem dissesse perto dele qualquer coisa ligada a ‘adorar’ que não fosse à Santíssima Trindade. Eita! Então, eu tinha que cuidar de como falar perto dele para não ganhar uma admoestação de graça.

O dicionário não me ajudava, pois está lá: “adorar: prestar culto a divindade”. Eitaaa! E a Etimologia endossa: ‘adorar’ vem do latim ‘adorare’, formado pela junção do prefixo ‘ad-’ e o verbo ‘orare’.

‘Orare’ é o que nos deu ‘orar’ em português. Daí temos o oráculo (de ‘oraculum’: resposta de um deus); a plantinha que fica ótima refogada, a ora-pro-nóbis (‹Pereskia aculeata›; de ‘ora pro nobis’: rogai por nós); a Oratória (a arte da eloquência) e o oratório (armarinho em que um santo é disposto para veneração).

‘Ad-’ carrega em si a ideia de ‘aproximação, estar junto de, para a’. Por exemplo, a glândula ad-renal, como o nome indica, é a que fica próxima ao rim. Inclusive, é daí que vem o nome ‘adrenalina’, o hormônio por ela produzido.



Há inúmeras palavras com ‘ad-’ na composição, sempre as relacionando a alguma outra coisa: adaptar (ajustar a), adequar (igualar a), aderir (colar a), adicionar (somar a), adjetivo (junto a), administrar (ajudar a ministrar), admirar (maravilhar-se com), adornar (equipar com), adquirir (vir a ter), advogar (chamar a si), etc.

Então, se orar é fazer uma prece, adorar é dirigir a súplica especificamente a algo ou alguém, pedir diretamente a uma divindade. Esse pedido pode ser feito num culto cerimonioso, o que fez ‘adorar’ ter o significado de ‘cultuar’. Direcionado a um ídolo (a imagem que representa a divindade), tem o sentido de ‘idolatrar’.

Quem pede é o adorador (em latim, ‘adorator’); quem recebe o pedido é o adorado (‘adoratus’) e o que é digno de adoração (‘adoratio’) é o adorável (‘adorabilis’).

Por uma extensão de sentido, indo lá para a Poesia, ‘adorar’ começou a ser uma hipérbole, uma figura de linguagem em que o exagero visa dar mais ênfase. Para se demonstrar o quanto se gosta de algo ou alguém, o objeto admirado é tão amado que passaria a ser adorado, merecedor de veneração.

Com o tempo, o significado foi sofrendo alterações. A adoração foi se distanciando das figuras divinas e se aproximando dos pobres mortais ficando apenas com o sentido de ‘ter grande predileção por, gostar muito de’. Aí, cabe a nós compreendermos e utilizarmos a palavra conforme o contexto, sem problema algum.

Brigadeiro? Adoooro, mas, claro, não a ponto de endeusá-lo. E aquela namoradinha do começo do texto? Ah, eu a adoro até hoje – minha veneração diária. ❤


📚 Referência: ‘Dicionário Latino Português’, por Francisco Torrinha (1942).

📸 Figura: @eunaoaguentomaisomilitantemistico, no Facebook (set. 2021).

Fonte: Nomes Científicos. Siga no Face

Título: Kiko Arquer

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