Nortear vs. sulear


Fiquei sabendo de mais uma palavra que deveria ser evitada, mais um termo a ser censurado: nortear. Igualmente, disseram que devem-se riscar do vocabulário os termos desnortear, norteamento, ‘ter um norte’, ‘perder o norte’ e por aí vai.


por Thiago Mendonça, em @NomesCientíficos Acompanhe-os no Facebook em https://www.facebook.com/NomesCientificos


No livro ‘Contos da minha vizinhança’ (2021), Rodrigo Elmas conta que um professor da Faculdade de Educação discursava com o dedo em riste:

“— Nortear? Que nortear? – ficara indignado e dera um pequeno chilique porque uma aluna usara o verbo nortear – O certo, segundo o físico brasileiro M. D. C., é sulear. Nortear expressa o eurocentrismo do homem branco europeu. Não repitam esse verbo. É sulear!”

O autor está falando de Marcio D´Olne Campos, físico brasileiro que criou o berbo ‘sulear’ em 1991, no artigo ‘A arte de sulear-se’. O termo problematiza o caráter ideológico da polarização Norte-Sul em que se consideraria o norte como referência universal; o norte seria superior e o sul, inferior.

Essa perspectiva influenciou diretamente na elaboração dos mapas e globos terrestres, nos quais o hemisfério Norte sempre foi apresentado na posição superior, com destaque. Nesse sentido, vários movimentos de afirmação cultural têm utilizado como símbolo o mapa proposto pelo uruguaio Joaquín Torres García, em 1943, em que a América do Sul é representado de cabeça para baixo. Nessa metáfora, propaga-se a ideia de que o Sul deve estar em destaque, que é preciso se emancipar da referência tradicionalmente imposta pela cultura europeia.

Paulo Freire ajudou a popularizar o verbo ‘sulear’ numa de sua obras. Em ‘Pedagogia da esperança’ (1992), discorrendo sobre essa questão Norte-Sul, o educador afirmou: “Era como se minha palavra, meu tema, minha leitura do mundo, em si mesmas, tivessem o poder de ‘suleá-los’”.

Sim; ‘nortear’, no sentido de ‘guiar, conduzir’, nasceu da noção europeia de se orientar espacialmente em relação ao norte. Tanto é que, originalmente, ‘nortear’ tem o sentido de ‘encaminhar em direção ao norte’.

A palavra ‘norte’ tem origem germânica, vindo do inglês arcaico ‘norþ’ pelo francês ‘nord’. Mesma origem tem ‘sul’, com origem no inglês arcaico ‘suþ’, também nos chegando pelo francês ‘sud’. A letra D do francês marcou nosso vocabulário. É por isso que quem é do norte é ‘nórdico’ (e não “nórtico”) e o ponto cardeal entre o sul e o oeste é ‘sudoeste’ (e não “suloeste”).



Historicamente, a orientação se dá pelo norte graças à Estrela do Norte, também chamada ‘Polaris’, a mais brilhante da constelação Ursa Menor. Por se situar aproximadamente no polo norte celeste, ela permanece praticamente fixa no céu.

Pela associação à Ursa Menor, os antigos gregos se referiam às terras mais ao norte como Ártico (do grego antigo ‘arktikós’, de ‘árktos’: urso). A área ao sul era o Antártico (‘antí’: contra), termo que, muito tempo depois, viria a nomear o continente antártico.

Em razão dos ventos, usavam-se para o norte também os termos ‘boreal’ (‘borealis’) e ‘setentrional’ (‘septentrionalis’). As denominações ‘região norte’ e ‘região sul’ foram se difundindo na Idade Média, com a criação da rosa dos ventos (século XIV), aquele gráfico circular que mostra as direções da esfera celeste: norte, sul, leste e oeste.

As grandes navegações do século XV em diante popularizaram o termo ‘norte’ a ponto que, já no século XVII, a palavra tinha o sentido figurado de ‘guia’. Na obra ‘Braquilogia de principes’, de 1671, o frei Jacinto de Deus disse que “a virtude é norte que a todos guia”.

A partir daí, em vários contextos, ‘norte’ deixou de significar um ponto cardeal ou uma região setentrional e passou a expressar ‘direção conhecida, rumo, orientação’. Quem está desnorteado não perdeu o caminho para o norte; apenas está desorientado.

‘Nortear’ deixou de ter vínculo com ‘norte’ da mesma forma que ‘orientar’ não tem nada mais a ver, a não ser etimologicamente, com ‘oriente, guiar-se pelo oriente’. As palavras nascem com um sentido, mas os povos as transformam conforme a necessidade.

A crítica ao termo ‘nortear’ assim como a proposta de ‘sulear’ têm grande importância quanto à análise ideológico-sociológica da relação Norte-Sul, como Marcio D´Olne Campos propôs. A reflexão é válida, claro.

O que não pode, como eu costumo argumentar sobre várias outras palavras e expressões polêmicas, é querer censurar ‘nortear’ noutros contextos, baseando-se em etimologia. Em todo caso, o bom senso é norte que a todos guia.

📚 Referências: ‘Vocabulário portuguez & latino’, por Raphael Bluteau, (1728); e ‘SULear vs NORTEar: Representações e apropriações do espaço entre emoção, empiria e ideologia’, por Marcio D’Olne Campos, na revista ‘Documenta’ (1999).

📸 Figura: adaptação de um printe do Twitter (fev. 2022).

🗣️ Sugestão: Thiago Mendonça.


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