Existe hajar?

Existe “hajar”? Existe! Há!

Publicado originalmente por Nomes Científicos – Siga-os no +Facebook

por: Margarida Marques Moraes


Se hajasse um concurso para escolher qual língua é a mais hajável de se brincar, não hajo dúvidas que seria a língua portuguesa. Língua súper plástica, modelável como um biscuí, gostosa de se manipular, ela sai da forma das normas gramaticais com uma hajabilidade espantosa!

Essa liberdade inovativa, livre das amarras gramaticais, fez o latim vulgar gerar o português e, mesmo dentro da nossa língua, inúmeras palavras serem torcidas e distorcidas, cortadas e coladas, hajadas e desajadas, para nos presentear coisa de 600 mil vocábulos atuais (sem contabilizar as derivações).

É o que os linguistas adoram repetir: a língua é fluida. Sem essa fluidez, os vocábulos seriam estáticos e a Etimologia nem hajaria.

Há vários motivos para se reformular as palavras. Na maioria dos casos, modificamos pela praticidade fonética, apelando à supressão e contração dos fonemas. Foi por isso que ‘luna’ virou ‘lua’ e gostamos de falar ‘gosdimais docê’ em vez de ‘gosto demais de você’.

Algumas vezes, ocorre a tal da ‘atração paronímica’, que é quando modificamos uma palavra por influência de outra parecida. Atraído pelo verbo ‘fluir’, muitos acabam falando /usufluir/ em vez de /usufruir/. Por querer imitar ‘retângulo’ e ‘triângulo’, tem gente que diz /losângulo/.

É tentando imitar outras palavras que a criança acaba criando novas conjugações verbais. Se para o verbo bater, falamos ‘eu bato’, para ‘saber’, na lógica infantil, o certo é ‘eu sabo’. Se é ‘eu bati’, então para fazer vamos de ‘eu fazi’. No fundo, no fundo, faz certo sentido!

Outro motivo interessante é o neologismo cômico. Modificamos as palavras justamente para ficar engraçado. Eu já falei tanto que fulano “não inflói, nem contribói; não soma, nem diminói”, que já passei apurado para lembrar que o certo é ‘influi’, contribui’ e ‘diminui’.

Por graça ou por erro, a gente nem sabe mais. Há quem se lembre até hoje dumas clássicas frases futebolísticas. Nunes, ex-atacante do Flamengo, nos anos 80, mandou esta: “A bola ia indo, indo, indo… e iu.” Jardel, ex do Grêmio, mandou “Eu peguei a bola no meio do campo e fui fondo, fui fondo, fui fondo e chutei pro gol”.

Outro marco da fraseologia esportiva foi o que disse o icônico ex-presidente do Corinthians, Vicente Matheus. Em 1987, ele soltou o bem bolado “Haja o que hajar, meu coração é corintiano”. Eita!



Deu que o dito ecoou pelos anos, aparecendo em vários jornais, revistas e páginas de internet. Num episódio famoso de 2013, viralizou a foto duma moça com a frase tatuada nas costas: “Haja o que hajar…”. Um ano antes, Lidiane Christina de Sousa (que aparece ali na foto) resolveu tatuar em suas costas o começo da frase que seu então namorado (atual marido) José Reinaldo Machado havia lhe dito, parafraseando Vicente Matheus: “Haja o que hajar, nunca vou te abandonar”.

Segundo Lidiane, era uma frase descontraída que tinha significado especial particular para os dois. O erro foi intencional, só para ser divertido. O duro é que a foto se espalhou pela internet e muita gente foi maldosa demais nos comentários. O caso apareceu até na tevê e virou tema da canção ‘Haja o que hajar’, do Cowboy do Cerrado. 😮

‘Hajar’ existe? Existe, sim. Hajar é um sobrenome de origem árabe, nome dum livro infantil sueco, dum perfume com cheirinho de âmbar e dum personagem do jogo de cartas ‘Magic’.

Tá, e na língua portuguesa, ‘hajar’ existe? Existe, uai, tanto é que você acabou de lê-lo, comprovando sua existência.

Segundo a norma-padrão, no entanto, o termo é considerado uma variação incorreta de ‘houver’, que é o verbo ‘haver’ conjugado na terceira pessoa do singular, do futuro do subjuntivo. A atração paronímica aí vem de ‘haja’, que está na terceira pessoa do singular, do presento do subjuntivo. Uia!

Como neologismo usado na expressão ‘haja o que hajar’, significando ‘aconteça o que acontecer’, podemos empregar ‘hajar’ sem problemas, desde que se queira enfatizar a característica cômica da mensagem. Agora, em textos formais, especialmente em avaliações escritas, recomendo evitá-lo, haja o que houver.


📚 Referência: ‘Histórias do Sandro Moreira’, por Marcelo “Massé” Duarte, na coluna ‘Humor’ da revista ‘Placar Magazine’ (mar. 1987); e ‘Garota tatua a frase “Haja o que hajar” nas costas!’, por Gilmar Lopes, na página ‘E-Farsas’ (mar. 2013).

📸 Figura: printe da página ‘Metas para 2019’/Facebook;

🗣️ Sugestão: Margarida Marques Moraes.

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