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Joelson Vieira da Silva.
Pseudoetimologia de tirar o entusiasmo
Há alguns anos, eu já tinha ouvido um pastor me explicar que a palavra ‘entusiasmo’ vem do grego antigo ‘enthousiasmós’, que significaria ‘Deus dentro’. Aí, a lógica seria essa: quem tem Deus no coração, vive entusiasmado; que não tem…
É uma fala até que recorrente nas igrejas. Fez sentido para mim naquela época, pois a palavra grega vem ‘enthousiázo’, da união de ‘én’ (dentro) e ‘théos’ (deus). Acontece que, o detalhe do termo ‘deus’ ter inicial maiúscula ou minúscula faz toooda a diferença. O pastor quase acertou.
Recorrer à Etimologia é uma estratégia muito usada por religiosos e ‘coaches’ para dar um ar mais científico àquela fala de incentivo. Algumas explicações são verdadeiras (e o que vem depois fica por conta deles), mas algumas etimologias pecam na forçação de barra.
Etimologia não é só ver por quais elementos a palavra é composta, mas procurar entender quando e onde ela apareceu e levar o contexto daquela época em consideração. Há se fazer uma análise historiográfica.
Sim, ‘enstusiasmo’ vem de um termo que significava ‘deus dentro’, mas é justamente por ser originária da Grécia Antiga que precisamos saber qual deus era esse, ou, melhor, quais.
Os antigos gregos eram politeístas. Em sua religião, acreditava-se que os deuses poderiam possuir as pessoas. O dramaturgo grego Eurípedes já falava em entusiasmo na peça ‘As bacantes’, no século V a.C., em que apresentava os chamados ‘delírios dionisíacos’.
Nos cultos em sua homenagem a Dioniso, o deus grego do vinho, do teatro, e ̶d̶a̶ ̶f̶a̶r̶r̶a̶ da loucura, o vinho rolava solto para que as pessoas entrassem num transe místico, em que poderiam sentir a divindade dentro de si (‘enthousiázo’). Uia!
As Mênades, ninfas seguidoras de Dioniso, eram famosas por serem muito doidonas. Bebiam e dançavam livremente, geralmente terminando em sexo violento. Por isso, o filósofo romano Sêneca (séc. I d.C.), ao contar a história de Medeia (esposa do herói Jasão), escreveu que ela estava entusiasmada como uma mênade.
Acreditava-se também que outro seguidor de Dioniso, o músico Orfeu, também voltava do submundo para entusiasmar os adoradores do deus do vinho, dando-lhes o dom de cantar e tocar muito bem.
Outros deuses, claro, também curtiam possuir os seres mortais conferindo-lhes aptidões específicas. O deus da guerra, Ares, concedia o ardor bélico necessário aos guerreiros. Eros, deus do amor, causava as paixões arrebatadoras, que deixam qualquer um fora de si. As Musas davam as inspirações artísticas ou científicas; daí o termo ‘musa inspiradora’.
Só no século II d.C. é que o grego Atenágoras de Atenas, um filósofo cristão que atacava as religiões pagãs, defendeu que o entusiasmo era a entrada do espírito de Deus (‘pneûma éntheon’), o Espírito Santo. Aí, sim, seguindo a tradição cristã, Deus com D maiúsculo.
Contra aquela bebedeira que os seguidores dionísicos faziam, o apóstolo Paulo, em sua Epístola aos Efésios (5:18), registrou: “E não vos embriagueis com vinho, que leva à devassidão, mas deixai-vos encher pelo Espírito”.
Hoje, entusiasmo não está mais ligado necessariamente a Deus, deuses ou outras divindades. Estar entusiasmado é nada mais do que estar animado, com intensa alegria ou uma fervorosa dedicação.
Por fim, deixo meu conselho: no âmbito cristão, pode-se falar que o entusiasmo é a presença de Deus dentro de si, mas não recomendo apelar à etimologia do termo, pois o deus em questão era outro, bem diferente – um que gostava mesmo era duma boa libertinagem.
Referência: ‘ἔνθεος, -ον’, no ‘Diccionario Griego–Español’, do ‘Instituto de Lenguas y Culturas del Mediterráneo y Oriente Próximo’ (jun. 2022).
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Joelson Vieira da Silva.
É um ponto de vista. Mas continuo achando que etimologicamente está correto sim. A questão é que cada qual tem um entendimento do que é ter “Deus dentro de si”: tem o deus e o Deus