Populismo salvacionista: ou “a Kombi e o bolsonarismo”

Senhora humilde com expressão emocionada, entre o choro e o sorriso, segura uma foto com a palavra "Mito" diante de uma Kombi velha e enferrujada — imagem que simboliza a fé popular em promessas políticas não cumpridas.

Populismo salvacionista: ou “a Kombi e o bolsonarismo”

Dona Maria acorda cedo. Lava a louça, ajeita o quintal, ajuda o marido com a Kombi que não liga há dois dias. Quando alguém pergunta se está tudo bem, ela sorri e diz com esperança: “Quando o Bolsonaro voltar, isso tudo melhora”. Na cabeça dela, o ex-presidente não é só um político — é um homem que vai consertar o Brasil… e talvez até a Kombi.

Esse tipo de crença não é novidade. Tem nome bonito nos livros de ciência política: populismo salvacionista. É quando o líder se apresenta como o único capaz de salvar a nação, resolver todos os problemas — dos grandes aos pequenos, do orçamento federal à dor no pé do eleitor.

O que é o populismo salvacionista?

É uma forma de liderança política baseada na promessa de redenção coletiva. O líder se coloca como figura carismática, que fala “como o povo”, “contra o sistema” e, principalmente, “por todos nós”. O discurso é sempre simples, emocional e direto: “Só eu posso salvar vocês”. Não é à toa que esse estilo ganha força em momentos de crise, quando as pessoas se sentem desamparadas, injustiçadas ou esquecidas.

Quando a promessa é absurda (mas funciona)

Durante um de seus discursos, Jair Bolsonaro afirmou:

“Vamos armar o povo de bem. Quem estiver armado não será escravizado” (2021).

Parece frase de filme de ação mal dublado, mas é real. Com isso, ele prometia segurança, liberdade e até dignidade — tudo isso por meio de clubes de tiro. A realidade? O número de armas disparou, mas os índices de violência continuaram altos, e nenhuma política pública efetiva de segurança foi implementada.

Aliás, nem para os clubes de tiro ele fez algo concreto. Mesmo levantando a bandeira, os CACs ficaram a ver navios — a tal anistia e os benefícios prometidos nunca saíram do discurso.

Enquanto isso, promessas de empregos, saúde, educação e transporte ficavam no plano das lives e das frases de efeito. A lógica era: se você se sente mal, frustrado ou injustiçado, alguém vai “limpar essa sujeira” por você. E aí entra o herói.

Dona Maria e o sonho que nunca morre

Na mente de Dona Maria, a política virou religião e Bolsonaro virou milagreiro. Ela não espera um plano econômico, um programa social bem desenhado, ou uma reforma séria. Ela espera que alguém venha “dar jeito”. E se a Kombi do marido falhar, tudo bem — a culpa é dos outros, da “velha política”, do STF, do comunismo.

Ela é parte de um fenômeno social e psicológico antigo: a projeção do desejo de salvação em uma figura forte. Freud já falava da transferência — quando depositamos em alguém externo aquilo que gostaríamos de encontrar em nós mesmos. Jung falava de arquétipos — o herói, o pai, o salvador. E o marketing político de hoje domina essa arte com perfeição.

Por que acreditamos?

Porque é humano. É reconfortante.
Num mundo confuso, é mais fácil acreditar que alguém vai resolver tudo, do que aceitar que a saída depende de esforço coletivo, política pública, participação crítica e tempo.

Além disso, há o medo. Medo de perder o que se tem, medo do novo, medo de ficar sem chão. E o medo, como dizem os psicólogos, adora um protetor.

Por isso, mesmo que as promessas não se concretizem, o mito sobrevive. O político messiânico não precisa entregar resultados, ele só precisa parecer lutar contra os “inimigos”. Seja distribuindo armas, seja plantando frases em redes sociais, seja se recusando a fazer o básico da gestão.

Sempre existiu, sempre existirá

Desde os tempos de Roma, passando por Napoleão, Perón, Hitler, Vargas, Chávez, até os dias de hoje — a figura do “salvador da pátria” reaparece com nova roupa, mas a mesma essência. Ela vende esperança fácil para problemas difíceis.

E continuará existindo. Porque a frustração é matéria-prima do populismo, e o desejo de viver melhor é legítimo — mas perigoso, quando canalizado por atalhos.

Só há uma vacina

O pensamento crítico.

Só ele permite que a gente se pergunte:
“Estou sendo atendido, ou apenas seduzido?”
“Isso é política pública ou teatro?”
“Eu apoio ideias ou estou só torcendo por alguém porque me sinto frustrado por dentro?”

Acredite: essa última pergunta, aparentemente simples, é uma das mais difíceis de se fazer com honestidade.

E talvez só quando a Dona Maria começar a perguntar isso, ela perceba que nenhum presidente vai consertar a Kombi. Mas um bom mecânico, com uma política de apoio ao microempreendedor, pode ajudar. E isso, no fim das contas, é política de verdade.

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